quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Fra Angélico 3: o santo confrontado com artistas contemporâneos

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs







Continuação do post anterior: Fra Angélico 2: veneração pelo dogma movia seus pincéis




O Beato foi praticamente o único pintor em seu gênero.

Seus contemporâneos já estavam contaminados pelo ideal terreno, eminentemente emocional, que dentro em pouco dominaria a Renascença em plena realização.

Zanobi Strozzi, um de seus primeiros discípulos, é um triste exemplo da solidão na qual os contemporâneos deixaram o mestre dominicano.

Em seu célebre quadro sobre Nossa Senhora, o Menino Jesus aparece despido (em todas as eras da Humanidade não se conhece exemplo de mãe que deixe seu bebê despido) enquanto Maria tem o olhar frio e vago, parecendo ignorar o Filho.

Dois anjos músicos ornam a parte inferior do quadro; um deles, o anjo da esquerda, melancólico e sensual, tem semelhança com certas figuras vistas nas ruas de nossas atuais cidades.

Strozzi pintou também o “Cristo do Apocalipse”, cuja expressão dura e impessoal da face e do gesto de mão, imprópria à majestade, contrasta com a mesma cena pintada por Fra Angélico no “Juízo Final”.

Giovanni di Francesco Ravezzano pertenceu à escola de Fra Angélico, embora tardiamente. Também ele quis representar Nossa Senhora com o Menino Jesus, mas sua concepção opõe-se à sutil sensibilidade do Beato.

Seus personagens já não exprimem nem pensamento nem elevação de sentimentos, quando não são sentimentais.

Pinturas como as de Ravezzano contribuíram poderosamente para desviar a fervorosa piedade mariana medieval.

Alguns quadros ou afrescos atribuídos a Fra Angélico por reconhecidos especialistas foram influenciados e até mesmo completados por seus “discípulos”, podendo assim apresentar detalhes contraditórios com o vulto geral de sua obra.

Seu estilo apresenta uma “linguagem pictórica” forjada por intensa vida espiritual e pelo desejo santo de retratar Deus, seus anjos e seus santos de modo a serem mais bem conhecidos e amados.

Seu inconfundível estilo pode ser apreciado particularmente na “Crucifixão”, na representação de “Nossa Senhora no trono”, no afresco sobre a “Anunciação” e no magistral afresco “Apresentação no Templo”, pintado em uma das celas do convento.

A “alma” de seus personagens pode ainda ser percebida numa simples iluminura de um saltério.

Trata-se da letra inicial do Salmo 52: “Disse o néscio em seu coração: Não há Deus. Perverteram-se, tornaram-se abomináveis...”

Com riqueza de detalhes a iluminura retrata o néscio — espírito precipitado e temerário —, voltado para os aspectos terrenos da existência, carente de elevação moral.

Um olhar mesmo fugaz desta iluminura despertaria imediatamente, em quem tinha o saltério nas mãos recitando os Salmos, uma santa repulsa por essa posição do espírito.

Pinturas de sobrenaturais virtudes da alma

Durante a visita ao Museu Jacquemart-André aprende-se que na biografia do Beato escrita pelo célebre Giorgio Vasari, o autor “insiste na particularidade de que o pintor parece ‘sair do paraíso’”.

A afirmação deste especialista se compagina a outra, de Plinio Corrêa de Oliveira, segundo a qual Deus, ao criar as maravilhas da natureza, deu-nos a tarefa de as completar.

Assim, muitas obras dos homens podem ser mais belas do que as da natureza, pois enquanto filhos de Deus os homens podem comunicar à sua obra algo de sua alma, a qual tem belezas inexistentes no mundo da natureza irracional.

A obra-prima de um pintor consiste em tomar aspectos da natureza — ou cenas da História Sagrada, no caso de Fra Angélico — comunicando a ela reflexos de sua alma habitada pelo sobrenatural.

Vê-se que o Beato Angélico uniu aspectos superiores de sua alma ao objeto de suas pinturas.

Ele mesmo fabricava suas tintas com safiras e rubis triturados, óleos especiais, resinas de utilização até então desconhecida.

E assim ele trouxe à luz aspectos recônditos da natureza e das almas, da felicidade temporal e dos vislumbres da glória eterna.

Suas tintas impregnaram telas e painéis de sobrenaturais virtudes de sua alma.

Quem contempla seus quadros tem a agradável sensação de estar em presença de realidades evidentes, conhecidas de todos, mas que convidam a um aprofundamento na medida em que uma luz suave emanando daquelas cores sugere traços transcendentais cujo conhecimento seria uma descoberta.

Em certo momento não se sabe o que mais atrai, se é a pintura ou a alma do Beato. Pode-se distinguir uma da outra?




(Autor: Nelson Ribeiro Fragelli, in “Catolicismo”, fevereiro 2012)


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quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Fra Angélico 2: veneração pelo dogma movia seus pincéis

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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política internacional,
sócio do IPCO,
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Continuação do post anterior: Fra Angélico 1: luz sobre o dogma e a França



O Beato concebeu suas obras, segundo a tradição medieval, como instrumento de apostolado. Ele quis que elas trouxessem ao mundo reflexos da Beleza divina e de sua Igreja — reflexos tão perfeitos quanto seu pincel fosse capaz de representar.

Sua visão do Belo deveria instruir, mover as almas à oração e à contemplação. Foi o que fez na cela dos frades ao receber ordem de seu superior de orná-las com afrescos, no convento de São Marcos. Nelas deixou pinturas cujos traços revelam, em sua pureza e simplicidade, intensa vida interior do artista.

Antigos autores sustentam a hipótese de que ele teria tido visões durante as orações preparatórias para a execução de seus trabalhos de pintor.

Assim como os monges-construtores das primeiras catedrais góticas no século XII tinham em vista exclusivamente a edificação espiritual dos fieis, Fra Angélico apresentou, sob seus traços e suas cores, a verdade e o dogma.

Sob as suaves aparências de seu estilo ele sensibilizou as almas e assim as moveu rumo à aceitação gaudiosa das verdades eternas. Ele sofria ao ver a crescente negação dessas verdades pelo espírito da Renascença, cuja virulência já em seus primórdios contaminava seus contemporâneos, pintores e religiosos como ele.

A suavidade de seus personagens não nos deve iludir. Se os gestos e feições deles não polemizam é porque ao serem pintados os grandes dogmas da Cristandade — ainda não tinham sido negados pelo ímpio Lutero —, o foram sob o influxo de alegria vinda da profunda paz da qual gozam as consciências retas.

Tais gestos e afeições invariavelmente denotam inabalável firmeza de princípios. A firmeza dos traços desperta o sentimento de coerência e de veracidade. A veneração pelo dogma movia seus pincéis.

Representações de perfeições espirituais

Em suas cenas são características as representações de largos espaços nos quais nenhuma ação se desenvolve. Esses espaços, imperceptivelmente, descansam o observador e permitem a meditação.

Ele preferia levar o observador à meditação em vez de provocar aplauso para a obra. Pouco tempo depois, com o advento da plena Renascença, seriam suprimidos esses espaços nas concepções artísticas, sobrecarregando-as de elementos geométricos ou alegóricos, excitando assim a imaginação em detrimento da composição lógica.

Estas execuções renascentistas introduziam a artificialidade, colhiam aplausos dos espíritos e os louvores faziam rejubilar seus autores voltados à glória terrena.

A singeleza das composições de Fra Angélico torna-as facilmente inteligíveis, os detalhes são subsidiários da idéia central e sua perspicácia psicológica enriquece agradavelmente o conhecimento. Suas obras ensinam.

As fisionomias, ao exprimir densidade de pensamento ou de sentimentos, comunicam a certeza de terem sido aquelas mesmas as cogitações do personagem representado. Ele tornou presente a vocação de cada figura através de seus traços fisionômicos.

Suas cenas são, portanto, repletas de um sentido histórico superior. Sua simbologia não é enigmática nem requer uma chave de interpretação para que o pensamento seja inteligível.

Ela é de um entendimento simples e imediato, embora, uma vez compreendida, desperte o agradável sentimento de se atingir uma superior percepção de um mistério divino.

Nesses quadros, paradoxalmente, o mistério nada tem de obscuro, mas é apresentado sob a luz da razão. Eles reproduzem assim, de algum modo, os ensinamentos da Revelação.

O encanto pelo mistério não é despertado por um astucioso jogo de cores, mas provém de aspectos sublimes da santidade delicadamente apresentados.

Tal como nas catedrais, é a luz e seus matizes que elevam os corações. “Ad lucem per crucem”, diz-se na Igreja. O sofrimento é apresentado pelo frade pintor como sendo um caminho rumo a revelações superiores.

Mesmo nas cenas de martírio as fisionomias permanecem inabaláveis, fixas em suas certezas e em sua determinação.

No quadro “São Lourenço ajuda os pobres”, as feições dos mendigos traduzem tanta calma e segurança quanto a de São Lourenço, portador da bolsa de moedas. Esplendorosamente vestido, São Lourenço jejuava a fim de dar aos pobres mais virtudes do que dinheiro, e o modo com o qual eles o fitam mostra que pediam do santo, sobretudo gestos e palavras de vida eterna. Assim eram os espíritos naquela época de fé.

Na cena inteira ressuma o desejo do pintor de inspirar virtudes sublimes. “Fra Angélico teve o carisma de exprimir em suas obras a perfeição espiritual — expressão tão mais excelente quanto mais elevado era o objeto da obra” (Plinio Corrêa de Oliveira).



(Autor: Nelson Ribeiro Fragelli, in “Catolicismo”, fevereiro 2012)







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